quinta-feira, novembro 06, 2008

Poema - Ela canta pobre ceifeira

posted under by Pypas | Edit This

Ela canta, pobre ceifeira


Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão !
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando !

Ah, poder ser tu, sendo eu !
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso ! Ó céu !
Ó campo ! Ó canção !A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve !
Entrai por mim dentro ! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve !
Depois, levando-me, passai !



Analise do poema “Ela canta pobre ceifeira”


O poema “Ela canta, pobre ceifeira” pode dividir-se em duas partes. Na 1ª parte, constituída pelas três primeiras estrofes, é focalizado o canto da ceifeira; na 2ª parte, as três últimas estrofes, o poeta expressa os sentimentos e as emoções que aquele canto desperta nele.

A ceifeira canta enquanto trabalha, embora haja subjectividade expressa pelo sujeito poético ao revelar pares antitéticos no poema.

O canto da ceifeira é caracterizado através de comparações. “Ondula como um canto de ave” para além da suavidade da voz da ceifeira, sugere o carácter inconsciente da alegria que manifesta na sua voz. “No ar limpo como um limiar” sublinha a pureza do ar em que a voz da ceifeira volteia, onde tudo ainda é possível, limpo e puro.

A expressividade das metáforas “a sua voz (…) ondula”, “E há curvas no enredo suave / Do som … “ que nos remetem para ondas e linhas curvas, sugerindo a harmonia do canto da ceifeira. Numa outra metáfora “Na sua voz há o campo e a lida”, encontramos uma antítese no verso, o contraste entre a alegria inerente ao acto de cantar e a dureza que caracteriza a “lida”, o trabalho árduo da ceifeira.

O canto, por natureza alegre, aparece na voz da ceifeira que poucas razões teria para cantar, segundo o sujeito poético. Opõe-se, o canto, metáfora de felicidade, à vida, que passa a conotar-se com dor e infelicidade.

Na segunda parte, o discurso é marcado pela emotividade, dado que o sujeito poético nos revela o seu universo íntimo. A função emotiva é marcada pelo discurso na 1ª pessoa (“em mim”, “no meu coração”, “minha alma”), pelas frases curtas de tipo exclamativo, pelo uso da interjeição, de verbos no infinitivo e expressando um desejo (“poder ser tu”, ter a tua alegre inconsciência”).

Na 4ª estrofe, o sujeito dirige um apelo a uma 2ª pessoa, através do imperativo, a ceifeira (“canta, canta sem razão”, “derrama (…) A tua incerta voz”), volta a usar o imperativo nos três últimos versos do poema, no entanto o apelo é dirigido, através dos elementos que rodeiam o sujeito poético (“Ó céu! / Ó campo! / Ó canção!”).

O poeta lança um apelo à ceifeira para que continue a cantar, porque é ao ouvir o seu canto que conduz à reflexão.

O sujeito poético inveja a inconsciência da ceifeira e a felicidade que lhe advém do facto de não pensar. O sujeito sabe que nunca poderá alcançá-las, pois “sofre” da dor de pensar.

A repetição do verbo cantar e o uso dos nomes “voz”, “canto”, “som” e “canção” atribuem ao canto da ceifeira um papel de centralidade do poema. O canto da ceifeira apresenta-se como metáfora da felicidade a que o sujeito poético aspira mas que nunca poderá atingir, porque enquanto a ceifeira se “julga” feliz porque não pensa, não intelectualiza as suas emoções, o poeta nunca poderá alcançar a felicidade que lhe inveja porque racionaliza as suas emoções.

Quanto à estrutura externa, o poema é composto por 6 quadras, com versos octossílabos e o esquema rimático é “abab” (rima cruzada).

0 comentários

Make A Comment
top