quinta-feira, novembro 06, 2008

Carta a Adolfo Casais Monteiro

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Carta a Adolfo Casais Monteiro


“ Passo agora a responder à pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. (…) A origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. (…)

Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (…)

Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou antes, o meu primeiro conhecido inexistente – um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. (…)

Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Tive várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria – me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho. (…)

Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio - me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas cousas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara – se – me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, Ricardo Reis.)

Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei – me um dia de fazer uma partida ao Sá - Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar – lho, já não me lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. (…) Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei – me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. (…)

Abri com um título, “O Guardador de Rebanhos”. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe – me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. (…)

Eu vejo diante de mim, num espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí – lhes as idades e vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro de dia e mês, mas tenho – os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (à 1,30 da tarde, diz – me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo. (…)

Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco.

Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura mais 2cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar – se. Cara rapada todos – o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma – só instrução primária; morreram – lhe cedo o pai e a mãe, e deixou – se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval.

Como escrevo em nome desses três?... Caeiro, por pura e inesperada inspiração, sem saber ao sequer calcular o que iria escrever. Ricardo Reis, depois de deliberação abstracta que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê.

Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer ”eu próprio” em vez de “eu mesmo”, etc, Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado.

Creio assim, meu querido camarada, ter respondido, ainda com certas incoerências, às suas perguntas. Se há outras que deseja fazer, não hesite em fazê-las. Responderei conforme puder e o melhor que puder. O que pudera suceder, e isso me desculpará desde já, a não responder tão depressa.

Abraça-o o camarada que muito estima e admira.”

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