quinta-feira, novembro 06, 2008

Carta a Adolfo Casais Monteiro

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Carta a Adolfo Casais Monteiro


“ Passo agora a responder à pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. (…) A origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. (…)

Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (…)

Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou antes, o meu primeiro conhecido inexistente – um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. (…)

Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Tive várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria – me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho. (…)

Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio - me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas cousas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara – se – me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, Ricardo Reis.)

Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei – me um dia de fazer uma partida ao Sá - Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar – lho, já não me lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. (…) Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei – me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. (…)

Abri com um título, “O Guardador de Rebanhos”. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe – me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. (…)

Eu vejo diante de mim, num espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí – lhes as idades e vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro de dia e mês, mas tenho – os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (à 1,30 da tarde, diz – me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo. (…)

Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco.

Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura mais 2cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar – se. Cara rapada todos – o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma – só instrução primária; morreram – lhe cedo o pai e a mãe, e deixou – se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval.

Como escrevo em nome desses três?... Caeiro, por pura e inesperada inspiração, sem saber ao sequer calcular o que iria escrever. Ricardo Reis, depois de deliberação abstracta que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê.

Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer ”eu próprio” em vez de “eu mesmo”, etc, Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado.

Creio assim, meu querido camarada, ter respondido, ainda com certas incoerências, às suas perguntas. Se há outras que deseja fazer, não hesite em fazê-las. Responderei conforme puder e o melhor que puder. O que pudera suceder, e isso me desculpará desde já, a não responder tão depressa.

Abraça-o o camarada que muito estima e admira.”

quinta-feira, novembro 06, 2008

Poemas - Escolhidos (Vários)

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Isto
 
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
 
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
 
Por isso escrevo em meio 
Do que não está de pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!




Como a Noite é Longa!


Toda a noite é assim...
Senta-te, ama, perto
Do leito onde esperto.
Vem p'r'ao pé de mim...

Amei tanta cousa...
Hoje nada existe.
Aqui ao pé da cama
Canta-me, minha ama,
Uma canção triste.

Era uma princesa
Que amou... Já não sei...
Como estou esquecido!
Canta-me ao ouvido
E adormecerei...

Que é feito de tudo?
Que fiz eu de mim?
Deixa-me dormir,
Dormir a sorrir
E seja isto o fim.



Quando as crianças brincam


Quando as crianças brincam
E eu as oiço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar.

E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.

Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no coração.



Não sei se é sonho se realidade


Não sei se é sonho se realidade,
Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema do sul se olvida.
É a que ansiamos. Ali, ali,
A vida é jovem e o amor sorri.

Talvez palmares inexistentes,
Áleas longínquas sem poder ser,
Sombra ou sossego dêem aos crentes
De que essa terra se pode Ter
Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez.

Mas já sonhada se desvirtua,
Só de pensá-la cansou pensar,
Sob os palmares, à luz da lua,
Sente-se o frio de haver luar.
Ah, nesta terra também, também
O mal não cessa, não dura o bem.

Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma do seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.



Não sei, ama, onde era,

Não sei, ama, onde era,

Nunca o saberei...

Sei que era primavera

E o jardim do rei...

(Filha, quem o soubera!...)

Que azul tão azul tinha

Ali o azul do céu!

Se eu não era a rainha,

Por que era tudo meu?

(Filha, quem o adivinha?)

E o jardim tinha flores

De que não me sei lembrar...

Flores de tantas cores...

Penso e fico a chorar...

(Filha, os sonhos são dores...)

Qualquer dia viria

Qualquer coisa a fazer

Toda aquela alegria

Mais alegria nascer

(Filha, o resto é morrer...)

Conta-me contos, ama...

Todos os contos são

Esse dia, e jardim e a dama

Que eu fui nessa solidão...

quinta-feira, novembro 06, 2008

Poemas - Escolhidos (Vários)

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O MENINO DA SUA MÃE


No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
– Duas, de lado a lado –,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! Que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
É boa a cigarreira,
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
"Que volte cedo, e bem!"
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.



Ó SINO DA MINHA ALDEIA


Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.



GATO QUE BRINCAS NA RUA



Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.



LEVE, BREVE, SUAVE


Leve, breve, suave
Um canto de ave
Sobe no ar com que principia
O dia.
Escuto e passou...
Parece que foi só porque escutei
Que parou.

Nunca, nunca, em nada,
Raie a madrugada,
Ou ‘splenda o dia, ou doire no declive,
Tive
Prazer a durar
Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir
Gozar.



TUDO O QUE FAÇO OU MEDITO


Tudo o que faço ou medito
Fica sempre na metade.
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada é verdade.

Que nojo de mim fica
Ao olhar para o que faço!
Minha alma é lúcida e rica
E eu sou um mar de sargaço –

Um mar onde bóiam lentos
Fragmentos de um mar de além...
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.



Liberdade

 
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
 
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
 
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
 
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
 
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
 
O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

quinta-feira, novembro 06, 2008

Poema - Não sei quantas almas tenho

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Não sei quantas almas tenho


Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que eu sou e vejo.

Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.


Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu"?
Deus sabe, porque o escreveu.



Analise do Poema “Não sei quantas almas tenho”


No poema “Não sei quantas almas tenho” o poeta reflecte acerca de si próprio, tentando responder à questão “Quem sou eu?”.

Na primeira estrofe há uma alternância temporal presente/passado aliada ao advérbio de modo “continuamente”, que expressa a constante fragmentação sentida pelo sujeito poético, ontem, hoje, sempre.

O poeta passa da primeira para a terceira pessoa nos três últimos versos da primeira estrofe, quando usa a generalização “todo(s), toda(s), o(s), a(s), aquele(s), aquela(s)”.

No sexto verso denuncia a angústia que a instabilidade lhe provoca, ou seja, o poeta que é constituído apenas por alma, vive na ânsia de se encontrar; por isso, vive sem “calma”, sem repouso.

Nas duas primeiras estrofes, salienta a fragmentação do sujeito poético “Não sei quantas almas tenho. /Cada momento mudei. /Continuamente me estranho.” e “Torno-me eles e não eu.”;

O seu desconhecimento em relação a si próprio “Cada momento mudei. / Continuamente me estranho. / Nunca me vi nem achei.”;

O sentimento de despersonalização “Torno-me eles e não eu. / Cada meu sonho ou desejo/ é do que nasce e não meu.”;

O seu papel de “espectador” de si “Sou minha própria paisagem, / assisto à minha passagem”;

A sua constante inadaptação “Diverso, móbil e só, / não sei sentir-me onde estou.”.

Na segunda estrofe, o poeta volta a centrar-se em si próprio utilizando uma tripla adjectivação para se autocaracterizar “Diverso, móbil e só”. Aponta, uma vez mais, para a multiplicidade do sujeito poético “Diverso”, definido como um ser volúvel e inconstante “móbil” e salientando a sua solidão “”.

A locução “Por isso” assume o carácter explicativo/conclusivo em relação às duas estrofes anteriores. O sujeito poético, tendo tomado consciência da divisão do seu “eu”, do seu auto desconhecimento, sente-se um estranho (“alheio”) em relação a si próprio. Olha para as “páginas” da sua vida como quem lê um livro que outrem escreveu, chegando a pôr em dúvida os seus próprios sentimentos – “o que julguei que senti”.

O sujeito poético sinaliza versos em que se define como um ser sem passado nem futuro “o que segue não prevendo, /o que passou a esquecer.

Os dois últimos versos são um desfecho lógico para o poema sendo “alheio” à forma como a sua vida se desenrola, não passando de um “espectador” que assiste à sua “passagem”, o sujeito poético não poderia tão pouco redigir notas à margem no “livro” da sua vida. O último verso encerra a resposta à interrogação retórica do verso anterior: alguém superior ao próprio sujeito comanda a sua vida.

quinta-feira, novembro 06, 2008

Poema - Ela canta pobre ceifeira

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Ela canta, pobre ceifeira


Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão !
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando !

Ah, poder ser tu, sendo eu !
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso ! Ó céu !
Ó campo ! Ó canção !A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve !
Entrai por mim dentro ! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve !
Depois, levando-me, passai !



Analise do poema “Ela canta pobre ceifeira”


O poema “Ela canta, pobre ceifeira” pode dividir-se em duas partes. Na 1ª parte, constituída pelas três primeiras estrofes, é focalizado o canto da ceifeira; na 2ª parte, as três últimas estrofes, o poeta expressa os sentimentos e as emoções que aquele canto desperta nele.

A ceifeira canta enquanto trabalha, embora haja subjectividade expressa pelo sujeito poético ao revelar pares antitéticos no poema.

O canto da ceifeira é caracterizado através de comparações. “Ondula como um canto de ave” para além da suavidade da voz da ceifeira, sugere o carácter inconsciente da alegria que manifesta na sua voz. “No ar limpo como um limiar” sublinha a pureza do ar em que a voz da ceifeira volteia, onde tudo ainda é possível, limpo e puro.

A expressividade das metáforas “a sua voz (…) ondula”, “E há curvas no enredo suave / Do som … “ que nos remetem para ondas e linhas curvas, sugerindo a harmonia do canto da ceifeira. Numa outra metáfora “Na sua voz há o campo e a lida”, encontramos uma antítese no verso, o contraste entre a alegria inerente ao acto de cantar e a dureza que caracteriza a “lida”, o trabalho árduo da ceifeira.

O canto, por natureza alegre, aparece na voz da ceifeira que poucas razões teria para cantar, segundo o sujeito poético. Opõe-se, o canto, metáfora de felicidade, à vida, que passa a conotar-se com dor e infelicidade.

Na segunda parte, o discurso é marcado pela emotividade, dado que o sujeito poético nos revela o seu universo íntimo. A função emotiva é marcada pelo discurso na 1ª pessoa (“em mim”, “no meu coração”, “minha alma”), pelas frases curtas de tipo exclamativo, pelo uso da interjeição, de verbos no infinitivo e expressando um desejo (“poder ser tu”, ter a tua alegre inconsciência”).

Na 4ª estrofe, o sujeito dirige um apelo a uma 2ª pessoa, através do imperativo, a ceifeira (“canta, canta sem razão”, “derrama (…) A tua incerta voz”), volta a usar o imperativo nos três últimos versos do poema, no entanto o apelo é dirigido, através dos elementos que rodeiam o sujeito poético (“Ó céu! / Ó campo! / Ó canção!”).

O poeta lança um apelo à ceifeira para que continue a cantar, porque é ao ouvir o seu canto que conduz à reflexão.

O sujeito poético inveja a inconsciência da ceifeira e a felicidade que lhe advém do facto de não pensar. O sujeito sabe que nunca poderá alcançá-las, pois “sofre” da dor de pensar.

A repetição do verbo cantar e o uso dos nomes “voz”, “canto”, “som” e “canção” atribuem ao canto da ceifeira um papel de centralidade do poema. O canto da ceifeira apresenta-se como metáfora da felicidade a que o sujeito poético aspira mas que nunca poderá atingir, porque enquanto a ceifeira se “julga” feliz porque não pensa, não intelectualiza as suas emoções, o poeta nunca poderá alcançar a felicidade que lhe inveja porque racionaliza as suas emoções.

Quanto à estrutura externa, o poema é composto por 6 quadras, com versos octossílabos e o esquema rimático é “abab” (rima cruzada).

domingo, novembro 02, 2008

Fernando Pessoa (Ortónimo) Características

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Características


Em Fernando Pessoa, há uma personalidade poética activa, designada de ortónimo, que conserva o nome do seu criador e uma pequena humanidade, formada por heterónimos, que correspondem a personalidades distintas;

No ortónimo, coexistem duas vertentes: a tradicional, na continuidade do lirismo português, e a modernista, que se manifesta como processo de ruptura. Na primeira, observa-se a influência da lírica de Garrett ou do Sebastianismo e do Saudosismo, apresentando suavidade rítmica e musical, em versos geralmente curtos; na segunda, encontramos experimentações modernistas com a procura da intelectualização das sensações e dos sentimentos;

A poesia, a cujo conjunto Pessoa queria dar o tÍtulo Cancioneiro, é marcada pelo conflito entre o “pensar e o sentir”, ou entre a ambição da felicidade pura e a frustração que a consciência de si implica;

Pessoa considera que a arte “é o resultado da colaboração entre o sentir e o pensar”. Daí a sensibilidade a fornecer à inteligência as emoções para a produção do poema;

Para exprimir a arte, o autor criativo precisa de intelectualizar o sentimento, o que pode levar a confundir a elaboração estética com o acto de “fingimento”. O poeta parte da realidade mas só consegue, com a autêntica sinceridade, representar com palavras ou outros signos o “fingimento”, que não é mais do que uma realidade nova;

O fingimento artístico não impede a sinceridade, apenas implica o trabalho de representar, de exprimir intelectualmente as emoções ou o que quer representar (ex: Autopsicografia);

O conceito de fingimento é o de transfigurar, pela imaginação e pela inteligência, aquilo que sente naquilo que escreve. Fingir é inventar, elaborar mentalmente conceitos que exprimem as emoções ou que quer comunicar;

Entrar no jogo artístico, fingir ao exprimir as emoções, mas com toda a dimensão da sinceridade, implica e explica a construção da poesia do ortónimo;

A dialéctica da sinceridade / fingimento liga-se à da consciência / inconsciência e do sentir / pensar;

Fernando Pessoa não consegue fluir instintivamente a vida por ser consciente e pela própria efemeridade. Muitas vezes, a felicidade parece existir na ordem inversa do pensamento e da consciência (ex: Ela canta pobre ceifeira…);

Pessoa procura, através da fragmentação do eu, a totalidade que lhe permita conciliar o pensar e o sentir. A fragmentação está evidente, por exemplo, em Meu coração é um pórtico partido, ou nos poemas interseccionistas Hora absurda e Chuva oblíqua;

O interseccionismo entre o material e o sonho, a realidade e a idealidade surge como tentativa para encontrar a unidade entre a experiência sensível e a inteligência;

O tempo, na poesia pessoana, é um factor de desagregação, porque tudo é efémero. Isso leva-o a desejar ser criança de novo. Mas frequentemente, o passado é um sonho inútil. Pois nada se concretizou, antes se traduziu numa desilusão;

Pessoa sente a nostalgia da criança que passou ao lado das alegrias e da ternura. Chora, por isso, uma felicidade passada, para lá da infância (ex: Quando era criança, Quando as crianças brincam…);

O ortónimo tem uma ascendência simbolista evidente desde os tempos de Orpheu e do Paulismo (ex: impressões do crepúsculo).

domingo, novembro 02, 2008

FERNANDO PESSOA (Ortónimo) Biografia

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Nasceu Fernando António Nogueira Pessoa em Lisboa, no dia 13 de Junho de 1888, filho de Maria Madalena Pinheiro Nogueira e de Joaquim de Seabra Pessoa.
Fernando Pessoa, um dos expoentes máximos do modernismo no século XX, considerava-se a si mesmo um «nacionalista místico».

A juventude é passada em Lisboa, alegremente, até à morte do pai em 1893 e do irmão Jorge no ano seguinte. Estes acontecimentos, em conjunto com o facto de sua mãe ter conhecido o cônsul de Portugal em Durban, levam-no a viajar para a África do Sul. Aí vive entre 1896 e 1905. À vivência nesse país da Commonwealth pode atribuir-se uma influência decisiva ao nível cultural e intelectual, pondo-o em contacto com os grandes autores de língua inglesa.

O Regresso a Portugal, com 17 anos, é feito com o intuito de frequentar o curso de Letras. Viveu primeiro com uma tia, na rua de S. Bento e depois com a avó paterna, na Rua da Bela Vista à Lapa. Mas com o fracasso do curso (frequentou-o poucos meses), governa-se apenas com o seu grande conhecimento da língua inglesa, trabalhando com diversos escritórios em Lisboa em assuntos de correspondência comercial.

Ficou sobretudo conhecido como grande prosador do modernismo (ou futurismo) em Portugal. Expressou-se tanto com o seu próprio nome, como através dos seus heterónimos. Entre estes ficaram famosos três: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Sendo que as suas participações literárias se espalhavam por inúmeras publicações, das quais se destacam: Athena, Presença, Orpheu, Centauro, Portugal Futurista, Contemporânea, Exílio, A Águia, Gládio. Estas colaborações eram tanto em prosa como em verso.

Teve uma paixão confessa - Ophélia Queirós - com a qual manteve uma relação muitas das vezes distante, se bem que intensa. Mas foi talvez Ophélia a única a conhecer-lhe o lado menos introspectivo e melancólico.

O seu percurso intelectual dificilmente se descreve em poucas linhas. É sobretudo o relato de uma grande viagem de descoberta, à procura de algo divino mas sempre desconhecido. Essa procura efectuou-a Pessoa com recurso a todas as armas - metafísicas, religiosas, racionalistas - mas sem ter chegado a uma conclusão definitiva, enfim exclamando que todos os caminhos são verdadeiros e que o que é preciso é navegar (no mundo das ideias).

Os últimos anos são vividos em angústia. Os seus projectos intelectuais não se realizam plenamente, nem sequer parcialmente. Talvez os seus objectivos fossem à partida demasiado elevados... Certo é que esta falta de resultados concretos o deita a um desespero cada vez mais profundo. Foi um profeta que esperava a realização da sua profecia, mas que morreu sem ver sequer o princípio da sua realização.

Fernando Pessoa morre a 30 de Novembro de 1935, de uma grave crise hepática induzida por anos de consumo de álcool, no hospital de S. Luís. Uma pequena procissão funerária levou o corpo a enterrar no Cemitério dos Prazeres. Em 1988, por ocasião do centenário do seu nascimento, os seus restos mortais foram transladados para o Mosteiro dos Jerónimos em Belém. Em vida apenas publicou um livro em Português: o poema épico Mensagem, deixando um vasto espólio que ainda hoje não foi completamente analisado e publicado.

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